sexta-feira, 30 de março de 2012

UM TEXTO DE OLAVO DE CARVALHO



Militares e a Memória Nacional
Olavo de Carvalho - Filósofo e Cientista
Político

 Como todos os meninos da escola na
minha época, eu não podia cantar o Hino Nacional ou prestar um juramento à
bandeira sem sentir que estava participando de uma pantomima. A gente ria às
escondidas, fazia piadas, compunha paródias escabrosas.

 Os
símbolos do patriotismo, para nós, eram o supra-sumo da babaquice, só igualado,
de longe, pelos ritos da Igreja Católica, também abundantemente ridicularizados
e parodiados entre a molecada, não raro com a cumplicidade dos pais. Os
professores nos repreendiam em público, mas, em segredo, participavam da gozação
geral.

 Cresci, entrei no jornalismo e no Partido Comunista,
freqüentei rodas de intelectuais.

 Fui parar longe da atmosfera da
minha infância, mas, nesse ponto, o ambiente não mudou em nada: o desprezo, a
chacota dos símbolos nacionais eram idênticos entre a gente letrada e a turminha
do bairro.

 Na verdade, eram até piores, porque vinham reforçados
pelo prestígio de atitudes cultas e esclarecidas. Graciliano Ramos, o grande
Graciliano Ramos, glória do Partidão, não escrevera que o Hino era "uma
estupidez"?

 Mais tarde, quando conheci os EUA, levei um choque.
Tudo aquilo que para nós era uma palhaçada hipócrita os americanos levavam
infinitamente a sério.

 Eles eram sinceramente patriotas, tinham um
autêntico sentimento de pertinência, de uma raiz histórica que se prolongava nos
frutos do presente, e viam os símbolos nacionais não como um convencionalismo
oficial, mas como uma expressão materializada desse sentimento.

 E
não imaginem que isso tivesse algo a ver com riqueza e bem-estar social. Mesmo
pobres e discriminados se sentiam profundamente americanos, orgulhosamente
americanos, e, em vez de ter raiva da pátria porque ela os tratava mal,
consideravam que os seus problemas eram causados apenas por maus políticos que
traíam os ideais americanos.

 Correspondi-me durante anos com uma
moça negra de Birmingham, Alabama. Ali não era bem o lugar para uma moça negra
se sentir muito à vontade, não é mesmo?

 Mas se vocês vissem com
que afeição, com que entusiasmo ela falava do seu país! E não só do seu país:
também da sua igreja, da sua Bíblia, do seu Jesus. Em nenhum momento a lembrança
do racismo parecia macular em nada a imagem que ela tinha da sua pátria.


 A América não tinha culpa de nada. A América era grande, bela,
generosa. A maldade de uns quantos não podia afetar isso em nada. Ouvi-la falar
de matava de vergonha.

 Se alguém no Brasil dissesse essas coisas,
seria exposto imediatamente ao ridículo, expelido do ambiente como um idiota-mor
ou condenado como reacionário um integralista, um fascista.

 Só
dois grupos, neste país, falavam do Brasil no tom afetuoso e confiante com que
os americanos falavam da América.

 O primeiro era os imigrantes:
russos, húngaros, poloneses, judeus, alemães, romenos. Tinham escapado ao terror
e à miséria de uma das grandes tiranias do século (alguns, das duas), e
proclamavam, sem sombra de fingimento: "Este é um país abençoado!" Ouvindo-nos
falar mal da nossa terra, protestavam: "Vocês são doidos.

 Não
sabem o que têm nas mãos".Eles tinham visto coisas que nós não imaginávamos,
mediam a vida humana numa outra escala, para nós aparentemente inacessível.
Falávamos de miséria, eles respondiam: "Vocês não sabem o que é
miséria".Falávamos de ditadura, eles riam: "Vocês não sabem o que é ditadura".


 No começo isso me ofendia. "Eles acham que sabem tudo", dizia com
meus botões. Foi preciso que eu estudasse muito, vivesse muito, viajasse muito,
para entender que tinha razão, mais razão do que então eu poderia imaginar.


 A partir do momento em que entendi isso, tornei-me tão esquisito,
para meus conterrâneos como um estoniano ou húngaro, com sua fala embrulhada e
seu inexplicável entusiasmo pelo Brasil, eram então esquisitos para mim.


 Digo, por exemplo, que um país onde um mendigo pode comer
diariamente um franco assado por dois dólares é um país abençoado, e as pessoas
querem me bater.

 Não imaginam o que possa ter sido sonhar com um
frango na Rússia, na Alemanha, na Polônia, e alimentar-se de frangos oníricos.


 Elas acreditam que em Cuba os frangos dão em árvores e são
propriedade pública. Aqueles velhos imigrantes tinham razão: o brasileiro está
fora do mundo, tem uma medida errada da realidade.

 O outro grupo
onde encontrei um patriotismo autêntico foi aquele que, sem conhece-lo, sem
saber nada sobre ele exceto o que ouvia de seus inimigos, mais temi e abominei
durante duas décadas: os militares.

 Caí no meio deles por mero
acaso, por ocasião de um serviço editorial que prestava para a Odebrecht que me
pôs temporariamente de editor de texto de um volumoso tratado O Exército na
História do Brasil.

 A primeira coisa que me impressionou entre os
militares foi sua preocupação sincera, quase obsessiva, com os destinos do
Brasil.

 Eles discutiam os problemas brasileiros como quem tivesse
em mãos a responsabilidade pessoal de resolvê-los. Quem os ouvisse sem saber que
eram militares teriam a impressão de estar diante de candidatos em plena
campanha eleitoral, lutando por seus programas de governo e esperando subir nas
pesquisas junto com a aprovação pública de suas propostas.

 Quando
me ocorreu que nenhum daqueles homens tinha outra expectativa ou possibilidade
de ascensão social senão as promoções que automaticamente lhes viriam no quadro
de carreira, no cume das quais nada mais os esperava senão a metade de um
salário de jornalista médio percebi que seu interesse pelas questões nacionais
era totalmente independente da busca de qualquer vantagem pessoal.


 Eles simplesmente eram patriotas, tinham o amor ao território, ao
passado histórico, à identidade cultural, ao patrimônio do país, e consideravam
que era do seu dever lutar por essas coisas, mesmo seguros de que nada ganhariam
com isso senão antipatias e gozações.

 Do mesmo modo, viam os
símbolos nacionais - o hino, a bandeira, as armas da República - como
condensações materiais dos valores que defendiam e do sentido de vida que tinham
escolhido. Eles eram, enfim, "americanos" na sua maneira de amar a pátria sem
inibições.

 Procurando explicar as razões desse fenômeno, o próprio
texto no qual vinha trabalhando me forneceu uma pista.

 O Brasil
nascera como entendida histórica na Batalha dos Guararapes, expandira-se e
consolidara sua unidade territorial ao sabor de campanhas militares e alcançara
pela primeira vez, um sentimento de unidade autoconsciente por ocasião da Guerra
do Paraguai, uma onda de entusiasmo patriótico hoje dificilmente imaginável.


 Ora, que é o amor à pátria, quando autêntico e não convencional,
senão a recordação de uma epopéia vivida em comum?

 Na sociedade
civil, a memória dos feitos históricos perdera-se, dissolvida sob o impacto de
revoluções e golpes de Estado, das modernizações desaculturantes, das modas
avassaladoras, da imigração, das revoluções psicológicas introduzidas pela
mídia.

 Só os militares, por força da continuidade imutável das
suas instituições e do seu modo de existência, haviam conservado a memória viva
da construção nacional.

 O que para os outros eram datas e nomes em
livros didáticos de uma chatice sem par, para eles era a sua própria história, a
herança de lutas, sofrimentos e vitórias compartilhadas, o terreno de onde
brotava o sentido de suas vidas.

 O sentimento de "Brasil", que
para os outros era uma excitação epidérmica somente renovada por ocasião do
carnaval ou de jogos de futebol (e já houve até quem pretendesse construir sobre
essa base lúdica um grotesco simulacro de identidade nacional), era para eles o
alimento diário, a consciência permanentemente renovada dos elos entre passado,
presente e futuro.

 Só os militares eram patriotas porque só os
militares tinham consciência da história da pátria como sua história pessoal.


 Daí também outra diferença. A sociedade civil, desconjuntada e
atomizada, é anormalmente vulnerável a mutações psicológicas que induzidas do
Exterior ou forçadas por grupos de ambiciosos intelectuais ativistas apagam do
dia para a noite a memória dos acontecimentos históricos e falseiam por completo
a sua imagem do passado.

 De uma geração para outra, os registros
desaparecem, o rosto dos personagens é alterado, o sentido todo do conjunto se
perde para ser substituído, do dia para a noite, pela fantasia inventada que se
adapte melhor aos novos padrões de verossimilhança impostos pela repetição de
slogans e frases-feitas.

 Toda a diferença entre o que se lê hoje
na mídia sobre o regime militar e os fatos revelados no site de Ternuma vem
disso. Até o começo da década de 80, nenhum brasileiro, por mais esquerdista que
fosse, ignorava que havia uma revolução comunista em curso, que essa revolução
sempre tivera respaldo estratégico e financeiro de Cuba e da URSS, que ele havia
atravessado maus bocados em 1964 e tentara se rearticular mediante as
guerrilhas, sendo novamente derrotada.

 Mesmo o mais hipócrita dos
comunistas, discursando em favor da "democracia", sabia perfeitamente a nuance
discretamente subentendida nessa palavra, isto é, sabia que não lutava por
democracia nenhuma, mas pelo comunismo cubano e soviético, segundo as diretrizes
da Conferência Tricontinental de Havana.

 Passada uma geração tudo
isso se apagou. A juventude, hoje, acredita piamente que não havia revolução
comunista nenhuma, que o governo João Goulart era apenas um governo normal
eleito constitucionalmente, que os terroristas da década de 70 eram patriotas
brasileiros lutando pela liberdade e pela democracia.

 No Brasil, a
multidão não tem memória própria. Sua vida é muito descontínua, cortada por
súbitas mutações modernizadoras, não compensadas por nenhum daqueles fatores de
continuidade que preservava a identidade histórica do meio militar.


 Não há cultura doméstica, tradições nacionais, símbolos de
continuidade familiar. A memória coletiva está inteiramente a mercê de duas
forças estranhas: a mídia e o sistema nacional de ensino.

 Quem
dominar esses dois canais mudará o passado, falseará o presente e colocará o
povo no rumo de um futuro fictício.

 Por isso o site de Ternuma é
algo mais que a reconstituição de detalhes omitidos pela mídia.

 É
uma contribuição preciosa à reconquista da verdadeira perspectiva histórica de
conjunto, roubada da memória brasileira por manipuladores maquiavélicos,
oportunistas levianos e tagarelas sem consciência.

 Perguntam-me se
essa contribuição vem dos militares? Bem, de quem mais poderia vir?





"...É graças aos soldados,
e não aos sacerdotes, que podemos ter a religião que desejamos. É graças aos
soldados, e não aos jornalistas, que temos liberdade de imprensa. É graças aos
soldados, e não aos poetas, que podemos falar em público.   É graças aos soldados, e não aos professores, que existe
liberdade de ensino. É graças aos soldados, e não aos advogados, que existe o
direito a um julgamento justo. É graças aos soldados, e não aos políticos, que
podemos votar..."

   
                     
                     
                     
                     
   Barack Obama

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