sábado, 14 de abril de 2018

UM TEXTO DE RONALD MENDONÇA

ASCENSÃO E QUEDA DA CATEDRAL DA BELEZA

Quase em frente à casa onde morei durante a infância, havia uma construção mal-assombrada, resquícios do que fora um dia uma monumental barbearia. Os antigos donos, filhos do barbeiro, seu Manoel, conhecido como Mané Barbeiro, jogaram no lixo o que o pai, paciente e obstinadamente, construíra anos a fio. O que se dizia era que seu Mané, depois de anos sem conseguir gerar filhos, e até de adotar uma criança, desatara o nó-cego da infertilidade.Com efeito, sua esposa engravidara pelo menos doze vezes. Teriam sido criadas pelo menos dez crianças, Numa época de famílias numerosas, o casal Mané Barbeiro e D. Maria do Barbeiro, magrelosa e desgrenhada, era destaque justamente pelos dez anos de abstinência filial, antes do desembesto reprodutivo. Dizia-se que toda aquela fecundidade teria sido obra de milagre atribuído a Santo Antonio. Mas o santo padroeiro foi além: transformaria a modestíssima barbearia num dos salões de beleza mais requisitados da Província.Vivia-se aquela fase áurea em que a figura lendária do Major Bonifácio Silveira resplandecia como uma das maiores lideranças, notadamente no quesito "agitador cultural". Tudo leva a crer que seu Mané era um bicho, não só nos sagrados deveres maritais, como na capacidade de empresário da tesoura e da navalha. Liderança nata, apesar dos poucos anos de estudo regular, conhecia um pouco de latim, mas o seu forte era a prodigiosa memória para fatos históricos, sem falar na natural intuição para cálculos. Sua fama era de leitor tão voraz quanto reprodutor. Mas, carregava inconfessável dor íntima: era convencido de que nascera para ser cirurgião,como não pode materializar o seu sonho, fez-se mestre imbatível da arte da capilaridade. Próspero, salão apinhado de gente de todas as classes sociais, nâo descuidou da educação dos filhos. Enquanto teve autoridade, todos davam uma mãozinha na sua "catedral da beleza" como orgulhosamente apelidara seu salão. O tempo passara rápido, Enviuvara. Os filhos crescidos, alguns vivendo às custas da barbearia, eis que o destino o apanhou desprevenido, ao herdar da avó materna tremores nas mãos que lhe subtraíram a inimitável destreza. No início dos tremores, dava para dissimular, mas não suportou a intolerável humilhação de furar a orelha de um cliente, enquanto dava o toque de gênio numa das costeletas.Afastou-se do métier, não sem antes distribuir funções aos filhos.Havia cabeleireiras e barbeiros contratados. Construíra uma respeitável empresa. Era uma referência no bairro. Dos dez filhos, apenas quatro trabalhavam no salão. Uma quinta especializara-se em fazer unhas. Trabalhava no centro da cidade, na barbearia do Pai João, no Livramento, e aparecia às segundas, quando quase ninguém costumava frequentar salões de beleza.Uma outra ficara no caixa. Relapsa, faltosa, mal-educada, pornográfica, tratava os clientes nos cascos. Rapidamente, a antiga "catedral" foi diminuindo de tamanho, chegou a "capela" e logo virou um "oratório". As confortáveis cadeiras estofadas ficaram cheias de furos. Já não dobravam. As preciosas tesouras inglesas foram sumindo, os jogos de navalhas chinesas perderam o fio e foram substituídas pelas lâminas de gilete. Os alvíssimos lençois de linho escocês cheirando a lavanda, que recobriam os fregueses, adquiriram um tom escurecido, mal-lavados e mal-cheirosos.Ratos e baratas desfilavam irreverentes entre os ralos clientes. Pingueiras escorriam pelos espelhos enferrujados. O cheiro de mofo e de excrementos de morcegos era nauseabundo. Dívidas acumulavam-se.Envelopes de cobranças de impostos já não eram sequer abertos. O malfadado costume de não repassar o percentual devido aos profissionais, que ainda tocavam o barco da "ex-catedral", viraria regra.O curioso era, segundo narram as histórias, é que a maioria dos herdeiros a tudo assistiam e nada faziam para tentar reerguer a empresa. O último e melancólico réquiem na profanada "Catedral da Beleza" foi o velamento do corpo do velho Mané Barbeiro, que não suportando conviver com a decadência, matara-se com Nitrosin.

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